ateliê
– sorte que isso ficou delicioso, não sabia que tu era cozinheiro
– sorte? minha querida, nunca foi sorte, sempre foi Deus. nah, foi treino na verdade... e brócolis
– continua brincando com Deus...
– ele vai me dar uma dor de barriga?
– na estrada, na hora que não der pra parar
– você é cruel comigo, parece o Velho Testamento
– eu? quem brinca com Deus não sou eu
– ele gosta de mim
– ah é?
– com certeza
– e como tu sabe disso?
– temos conversado
– debochado
– é verdade. agradeci ele pelas ideias boas que tenho recebido
– que ideias?
– tipo essa aqui. ele me mandou enquanto eu te olhava arrumar a mesa
– que que você fez? um desenho?
– sim, você vê depois, vai ficar aqui no teu caderno
– nada disso, não me deixa nervosa. me mostra. me mostra. meu... isso tá muito bom. sou eu?
– é você
– por que eu?
– porque eu adoro ver como os teus olhos ficam olhando pra janela quando tu te empolga contando uma história. não sei se tu percebe, mas tu começa a usar as mãos e direciona o olhar pra longe
– mentiroso. e por que só a minha cabeça tá colorida?
– você sabe que é verdade… hmm até ficou vermelha. tua cabeça tá colorida porque ela é um ateliê
– um ateliê? isso é uma ofensa ou um elogio? bocó
– quanto mais tu me xinga, mais tu prova o meu ponto. e hoje tu tá meio grossa comigo, né? sim, um ateliê. se você não consegue ver que um ateliê é uma ideia de vida, não posso te ajudar
– desculpa. como você pensa nessas coisas? não precisava perder tempo me desenhando …ficou lindo, tu tem que começar a publicar
– publicar? nah, não sou bom. e como? eu só presto atenção, o ateliê me dá tudo o que eu preciso pra desenhar
– bobo. eu tô com o olho cheio d'água, como isso não é bom?
– não é, mas obrigado
– então eu sou um ateliê? acho que gosto disso. gosto da ideia de ser algo valioso pra ti. e você é o que?
– eu? eu não sou nada
– tu tem uma alma apaixonante, sabia?
– tenho? bom saber, vou usar isso como argumento no futuro. e também sou o cara que vai ficar livre da louça
– nada disso. já pra cozinha
– mesmo depois dessa OBRA DE ARTE que eu fiz?
– já!
– seu pedido é uma ordem
– fica parado! não te mexe!
– oi? assim?
– isso, deixa eu tirar uma foto tua
– uma foto minha de costas, na entrada da tua cozinha?
– sim, nessa posição
– é pra ser o que?
– é pra guardar esse momento
– do pós-almoço em que eu vou lavar a forma e os pratos?
– de você na minha casa sendo bom pra mim
– ...porra, que que eu falo agora?
– nada. continua parado
– tá pesando o braço
– pronto
– deixa eu ver, ficou legal?
– não tem nada o que ver aqui, vai lavar a louça
– então me manda depois
– mando, pode deixar
– onde tá o detergente?
– no potinho branco aí na pia
– que poti– ...achei
– posso te perguntar uma coisa?
– manda
– você gostou de ontem?
– eu curti muito, e você? meu braço ainda tá doendo da mordida
– ai, dramático. eu também. você tá feliz de estar aqui comigo?
– muito, eu nem sabia que isso ainda era possível. e tu?
– eu também. como assim, o que não era possível?
– ir levar o lixo de madrugada na rua e começar a rir sozinho vendo o céu. sem motivo algum, só por estar feliz
– e por que você não me acordou hoje de manhã?
– não quis atrapalhar teu sono, a gente dormiu tarde
– perdemos tempo. poderíamos ter aproveitado mais, sei que não foi fácil pra você vir
– tá tudo bem, você tava cansada do trabalho
– é? tá bom então
– que foi? tá braba?
– sim
– o que foi que eu fiz?
– eu tô com saudade, tô ficando birrenta. gosto das tuas cicatrizes no queixo e na bochecha
– saudade? mas eu nem fui embora ainda
– mas vai daqui a pouco
– ainda tenho algumas horas. eu adoro teus dentinhos tortos
– tu precisa ir
– já? eu fiz algo errado?
– vai ser mais fácil
– dirigir na chuva não é um problema
– tu me deixou dormir e eu fiquei vermelha antes. tá começando
– tá?
– sim, se você for agora vai ser mais fácil
espero que isso se torne um clássico futuramente