ateliê / 2
— que chiqueee, gostei da barba feita, tá lindo. lembrou de passar no mercado? sai atrasada e não consegui passar lá — trouxe as duas xícaras para a mesa da sala.
— tô? tô me sentindo com cara de criança. passei sim, mas só tinha desnatado, o integral já tinha acabado. tua chefe descontou os atrasos? — deixou as compras na pia e a mochila no canto da porta de entrada; tirou dois lápis e um caderno de desenho do bolso maior; brincava com os cachorrinhos que pulavam nas canelas querendo atenção da visita.
— não descontou, mas me deu um sermão explicando que não estou sendo uma boa colaboradora… não vamos falar disso. você tá bem? que foi? — beijo rápido de chegada.
— eu? sim. nada demais, acordei mais quieto, pensativo
— que que tu tá pensando? me conta
— é difícil explicar, deixa. trocou os armários de lugar? ficou muito foda. enfim, precisa levar os pitocos pra dar uma volta? — apontou para as coleiras penduradas na parede.
— não precisa, obrigada. não mude de assunto
— mesmo? — careta de preguiça.
— sou toda ouvidos, meu bem — prendeu o cabelo com um dos lápis e se acomodou no canto do sofá, de frente pra ele.
— ai ai ai, viu? — largou os materiais na mesa. Gole no chá, agradecimento pela bebida. Sentou na cadeira com as costas na parede.
— quem morreu? — curiosa.
— é pior, acredita? — exagerado.
— falaaa! — acomodou os cachorros no colo.
— eu vou te devolver a pergunta, acho melhor. tu ainda tem sonhos, hoje em dia?
— sonhos?
— sonhos
— eu? — voz cansada. — grande sonhos, grandes planejamentos, grandes cansaços
— às vezes eu esqueço desse teu lado meio foda-se
— você pensa demais, meu querido
— e você pensa de menos
— e é por isso que a gente se entende
— é?
— não sei, acho que sim. não quero pensar nisso agora. RÁ!
— tá toda engraçadinha hoje
— dia 5, o dia mais feliz do mês
— achei que era porque eu acabei de chegar
— siiim… claaaro, é por isso sim… quem se importa com salário? — riu de imediato sem conseguir se manter irônica.
— ó pra ti — dois dedos do meio na direção dela.
— então, que que houve? sonhos… — deu sinal para que ele seguisse.
— quanto mais eu me afundo nos meus sonhos, mais eu me afasto dos sonhos dos outros
— como assim?
— acho que por muito tempo sonhei o sonho que os outros queriam que eu sonhasse — outro gole no chá.
— vamos com calma. repete, por favor. muitos sonhos nessa frase
— é isso, eu só tô descobrindo agora quais são os meus sonhos. e meio que pra alcançar eles, eu preciso me distanciar do que planejaram pra mim
— eles quem?
— você sabe quem
…
— aaah! sei. eles. tá, desculpa
— tudo bem
— que sonhos são esses?
— nada demais. mas não é como se eu tivesse escolhendo abandonar todo mundo. eu quero crescer e envelhecer cercado de criança, amigo, família… cachorrinhos — apontou para os filhotes. — só que…
— só que dificilmente as pessoas sonham em conjunto por muito tempo, né? — olhos de conforto.
— entende? — sorriso de boca fechada.
— acho que comecei a entender, continue
— é libertador saber o que me faz feliz, sabe? e é muito foda conseguir viver esse momento enquanto eu tô contigo. juro.
— maaaas…
— mas sei lá — deu de ombros.
— mas sei lá?! você tá me dando um fora?! é isso?! depois de eu fazer o teu chá preferido? — risos na sala, filhotes latindo.
— te dando um fora, era só o que me faltava… eu não sou uma pessoa que dá fora, meu bem
— eu dou
— eu sei. te conheço
— sonhos — encarou-o erguendo as sobrancelhas.
— sim, sonhos… ok. semana passada, teve uma noite que eu cheguei tardão em casa, saí do banho quase duas da manhã, abri uma cervej—
— jantou?
— jantei uma cerveja, vesti meu calçãozinho e—
— o azul rasgado? o crime à humanidade?
— crime à humanidade? não sei do que tu tá falando… vesti ele e deitei com as costas molhadas. tava friozinho e eu deixei a janela aberta. o céu tava muito claro, parecia seis da tarde no inverno. liguei uma música, olhei pra janela e… sabe quando o corpo tá quente, o cabelo molhado, mas o vento tá um frio agradável e os músculos começam a relaxar?
— sei, amo isso. ótimo pra se gripar
— nessa hora eu senti que ia explodir de tanta alegria. por um minuto meu peito ferveu. olha o quanto de coisa boa tem acontecido comigo, com a gente… olha a gente… sabe? porra, quem diria?! você é a coisa mais incrível que existe nesse mundo
— bobo, para. maaaas… — esperava o tapa depois do afago.
— mas eu me senti muito triste, também. me senti vazio. provavelmente é paranoia minha, mas eu tenho a sensação de que todas essas coisas boas vão acabar
— por que?
— porque essas coisas não acontecem assim. e tu também já me disse quais são os teus planos, lembra? eu sei que pode parecer dramático, mas tu se muda no final do ano
— mas é só no final do ano — ela falou baixo em tom de adiamento.
— maaaas… — ele devolveu o deboche.
— você não vai vir comigo, né? — refazia o coque desviando o olhar pra cozinha.
— não sei. antes eu tinha certeza que sim. agora… tu me entende? — perguntou triste.
— eu te entendo
— mas isso é só no final do ano, vou torcer pros meus sonhos darem errado ou pra que a tua transferência seja cancelada
— então pronto, encontramos a solução — pôs os filhotes na cama de panos e chamou-o para o sofá. Deitaram. Ela sobre ele, peito no peito, respiração no pescoço, inspiravam e expiravam uníssonos, coque desfeito, cafuné no cabelo.
— você tá bem? eu tô fazendo alguma coisa errada? tô confuso — sussurrou no ouvido dela.
— eu tô feliz por você. você merece isso. esquece eles. a gente vai achar um jeito — segurava a mão dele para que não coçasse as feridinhas do rosto.
— vamos?
— com certeza
…
— eu tenho uma pergunta pra ti — tirou o cabelo grudado do rosto e olhou para ele.
— manda — brincava com os anéis da mão dela.
— que gosto e que cheiro teus sonhos têm?
— que pergunta é essa? tu vai rir de mim
— alguma vez eu ri?
— váááárias — tosse de risada — mas assim ó, não foram poucas, tá? tu é muito debochada
— para, não foram tantas! fala, eu não vou rir
— deixa eu pensar — olhou para ela — vai você primeiro
— meus sonhos… ostras com limão, jabuticaba, cheiro de verniz, gloss de morango, batata com molho de tomate e amaciante Comfort. e os teus?
— bom, hein? me expl—
— e bolo de caneca! — interrompeu.
— e bolo de caneca. quer falar sobre?
— e o shampoo da minha vó. e bafinho de gato. e brócolis. e sopa de letrinhas. e cheiro de lençol passado. desculpa, vai
— adoro te ver empolgada. me explica eles
— adivinhe. você não é artista? interprete
— eu desenho, meu amor. uma coisa não tem nada a ver com a outra
— não vou. e os teus?
— os meus… cara, os teus são muito bons, puta merda — cumprimento de soquinho.
— os teus, vai — curiosa.
— gelatina de framboesa, livro novo, torradas de queijo com orégano, pão com requeijão, fricassê e vinho branco… – olhava para o teto lembrando dos outros — chá de cidreira, o perfume que tu tava usando naquele primeiro sábado e chocolate com amendoim
— e nenhuma fruta, tu percebeu?
— tava demorando pra me criticar, é incrível
— só besteira e comida pesada, meu Deus
— o teu perfume é besteira? pelo amor de Deus digo eu… esse é um dos motivos pelo qual eu continuo curioso em ti
— qual? fazer boas críticas?
— fingir que não se importa. gosto de você assim, tu fica bem bobinha
— bocó
— não tenho sonhos — imitou a voz dela — e falou de duzentos tipos
— eu não disse que não tenho sonhos, eu só não crio expectativas
— tu acha que vai dar errado?
— meu medo é que eles deem certo
— e eu que sou bocó?
— pensa comigo… agora tu vai me ouvir — sentou de frente para ele. — e se existir destino?
— destino? sério?
— vai criticar?
— desculpa, siga
— acaso e destino são bem parecidos. os dois te jogam na cara que você não controla nada no universo
Silêncio de concentração. Ela continuou.
— não digo só as coisas do dia a dia. mas aquelas que a gente não sabe bem o nome. "meu sonho é ser médica: bum, descubro uma doença rara", "me recupero: bum, atropelamento", "me recupero de uma doença rara e de um atropelamento, bum: me apaixono pelo enfermeiro que está me atendendo", "nos casamos e com ajuda dele viro médica". o meu destino sempre foi ser médica ou os acasos me levaram pra isso?
— primeiro: que desgraça de vida. segundo: que enfermeiro é esse?
— nossa, ele é demais, vou te apresentar um dia… mas sério, às vezes os sonhos me sussurram quando eu menos espero. eles aparecem muito do nada. eu tô ali na fila do mercado, vejo uma criança fazendo birra se jogando no chão e penso: não sei mais andar de bicicleta, um dia eu preciso visitar o Louvre — encarou-o envergonhada. — você não tem isso?
— tu é incrível. já te disse isso hoje?
— bobo. como é que você me chamou antes? sou um ateliê — gesticulou requintada.
— é. um ateliê… eu escuto, acho. mas não sei direito de onde vem
— vem daquela vagabunda, né? qual é o nome dela?
— ah sim, a menina que gostava de mim na escolinha, que gritava "casa comigo, casa comigo"?
— tu é um safado, eu sabia. nunca gostei dela
— ciúmes?! vocêêê?
— ciúmes sim. essas cicatrizes aí são só minhas
— tá certa. não tenho pensado em dividir elas com outras pessoas… puta merda, falar sobre essas coisas me deixa…
— com sede de vida?
— com sede de vida.
— final do ano a gente pensa no resto. qual é o teu sonho agora, meu queixinho com cicatriz?
— o meu? agora? meu sonho é que tu tenha lembrado de pedir a forma de vidro pra vizinha
— é por isso que eu digo: não cultive sonhos
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