borboletas mortas
Escutou choro vindo da frente do prédio. Que seja samba e não tristeza. Desligou as bocas do fogão e caminhou rápido.
Pisou numa poça d'água e encharcou a pantufa. Puta que pariu. Se aproximou e viu uma roda de moradores tentando acalmar o senhor em prantos.
Sentado no meio-fio da rua, pressionava as duas mãos na barriga. Uma das mulheres perguntou ‘quer que eu chame uma ambulância?’, ele sinalizou que não. ‘É vesícula?’, ‘alguém sabe se ele mora aqui?’, ‘essa bicicleta é sua?’.
Aos poucos foram embora dizendo que os compromissos não esperam.
Agora só os dois.
Sentou ao seu lado com a meia esquerda ensopada. Perguntou o que estava acontecendo e o velho teve receio de contar. Defensivo. O que chegou disse que não queria detalhes, apenas uma forma de como ajudar. A fala soou prepotente.
O choro parou e o velho reagiu.
— você? me ajudar? guri de merda
— o que o senhor tem? — ignorou a ofensa.
— tenho dor de barriga
— posso buscar um remédio — respondeu de imediato.
— remédio?! o que você faz da vida? é médico?
— eu pinto
— ah, você pinta? que sorte a minha. você é famoso? — limpava as lágrimas na camisa suada.
— pinto e desenho. não sou famoso. vim pra cá agora e recém comecei a vender meus quadros
— iniciante, então. e o que mais?
— e tento ajudar velhos quando escuto eles chorando
— e o que mais?
— e acabei de pisar numa poça d’água
— e é debochado o tempo todo?
— só quando convém
— está sendo debochado agora? — olhou curioso.
— agora? obviamente que não — riso sem mostrar os dentes.
Quietos, absortos, olhando a bicicleta caída. A dor parecia dar trégua.
— pintor, você sabe mentir?
— sou o maior mentiroso que essa cidade já viu
— fala sério?
— você acreditou quando eu disse ser pintor?
— me mentiu? — desconfiado.
— importa?
Deu de ombros.
— preciso que me ajude a criar uma mentira
— é sobre a dor de barriga? precisa de um atestado?
— é sobre a dor de barriga, mas não preciso de um atestado. preciso que me ajude a mentir
— mentir pra quem?
— pra mim mesmo
— quer acreditar numa mentira?
— é a única fé que me sobrou, acredite
— me explique e te ajudo. já consultou qual é a dor?
— é das borboletas que morreram no meu estômago
— borboletas mortas? foi algo que o senhor fez?
— não me arrependo de nada, mas preciso que as borboletas batam asas de novo pra que isso pare
— qual mentira quer que eu te conte?
— a que faça um velho acreditar que o tempo cura tudo
— isso vai te custar caro
— vai me cobrar por isso? — julgou.
— eu? não. a vida
— é o único jeito. não tenho mais sangue e gana nas veias. me sinto fraco. me dói
— posso ser sincero contigo? — perguntou com cuidado.
— por favor – igualmente cauteloso.
— irei te contar uma mentira tão grande que me sentirei culpado caso o senhor acredite nela
— isso é comigo, não te preocupa
— estou pensando, me dê um momento. não quero o peso de um velho derrotado nas minhas costas
— derrotado?! — estufou o peito.
— opa, quer dizer que ainda restou alguma coisa aí? — pôs a mão no ombro do velho.
— deixe de palhaçada. não quer me ajudar? o que vai fazer? pintar um quadro pra mim?
O pintor tirou a pantufa e confirmou que o pé ainda estava molhado. Estalou os dedos e direcionou a fala para o distante.
— bom… o senhor já viu uma mãe que não sabe nadar se jogando no rio pra salvar seu filho?
— já vi. o que quer dizer?
— já viu um irmão mais velho surrando quem bateu no seu caçula?
Afirmou com um ponto de interrogação.
— o senhor já viu um cabelo crespo brilhando no sol ou um casaco azul de tricô?
Outra vez sinalizou que sim.
— já riu ao ponto de tontear e se mijar?
Outra vez sinalizou que sim.
— já viu seu time ser campeão?
Outra vez sinalizou que sim.
Concordava pairando entre a paciência e o anseio.
— o senhor já chupou uma buceta?
Explodiram em gargalhadas.
— já?! ótimo… já sofreu a dor de alguém que se negou ser ajudado?
— pra que tudo isso? — defensivo.
— já chorou a perda de um filho?
Olhos enrugados no chão.
— já? então o que mais você quer dessas borboletas? me parece que o senhor já viu e viveu tudo o que é mais puro nesse mundo. não posso te ajudar, meu amigo
— não há mais nada, pintor? nada?
— eu é quem deveria te perguntar isso. o que te faz levantar da cama de manhã cedo?
— o que faz você levantar cedo de manhã? — devolveu.
— só saio da cama depois do meio dia
— filho da puta — a risada abafada escapou.
— não posso te dizer o que o senhor deve sentir. não é meu papel e eu seria burro se tentasse
— parece que a vida já aconteceu inteira desde que as borboletas morreram
— quando foi?
— não sei mais, já faz tanto tempo
— e por que esse choro aqui e hoje?
— hoje é aniversário dela
— dela? filha, mãe ou esposa?
— importa?
— o senhor precisa das borboletas pra viver? deixar pra lá talvez não seja o saudável a se fazer?
A bicicleta seguia caída e o vento forte fazia a roda dianteira girar.
— o senhor já viu a lua laranja de fevereiro?
Olhava para cima e para os lados buscando alguma memória enterrada ou extraviada.
— lua laranja de fevereiro? – prestou atenção.
— nunca viu? então é isso que falta. a lua que deixa tudo parecendo um pomar. sabe aquela poeirinha líquida que salta da laranja quando a gente dá o primeiro corte?
— sei
— pois então, é essa a sensação
— nunca vi essa lua. isso é comprovado? — desconfiado.
— não tem nada a ver com ciência ou religião. eu só vi uma vez. mas não sinto saudades dela. me sinto grato por ter conseguido vivenciar. acho que a maioria das pessoas não enxerga, no final... é uma pena. me sinto sortudo, na verdade. é sério que o senhor nunca viu?
— onde eu encontro isso? isso vai acordar as borboletas?
— as borboletas já morreram, não morreram?
— essa é a tua mentira?
— as borboletas já morreram, não morreram?!
— essa é a tua mentira?!
— mentira? eu te juro por tudo que é mais sagrado que isso aconteceu. o senhor nunca foi de olhar muito pro céu, né? ...me permite?
Tirou a meia úmida e apontou em sua direção. Agressivo, arrogante e desrespeitoso, insultou com a voz mais pausada, calma, macia e falsa possível:
— aqui. quer um incômodo de verdade? vista essa meia e pedale de volta pra casa com um pé molhado. pare de choramingar e trate de dar jeito numa janela com vista pro céu. minhas panelas estão no fogo, preciso voltar pra casa
Levantaram companheiros.
Endireitou-se ao lado da bicicleta.
— que vão à merda essas borboletas
— que vão à merda essas borboletas. — repetiu.
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