hiding place
ou: Arctic Monkeys e Vidas Passadas
E aí, gurizada! Tudo bem? Espero que sim! Por aqui, estamos entre esconderijos de Seul e bares fictícios.
Hoje, voltamos diretamente pra Inglaterra de 2013 e pra Coreia do Sul de 2023.
Bem, não sei se você é um grande fã de Arctic Monkeys… e aqui preciso fazer a primeira intervenção (entre parênteses) do escritor com o público. É difícil apresentar uma de nossas bandas favoritas. Curiosidades, canções, números e exemplos inundam a cabeça quando precisamos apresentar algo que gostamos pralguém que OU nunca ouviu falar OU não se interessa OU não gosta antes mesmo de ouvir.
Mas não você.
Se você tá aqui, com certeza tá interessado, certo?
Não sei. E também não quero usar muito do teu tempo tentando te apresentar uma banda com sete álbuns lançados (pelo que me lembro) e 20(!) anos de carreira. Vai ser melhor. Vou te descrever o Arctic Monkeys na voz escrita do Matheus Adolescente que venerava Pearl Jam e descartava grande parte do que era “novo”.
(Entenda “novo” como algo dos anos 2000.)
“Arctic Monkeys é banda pra guria, com um monte de piá magro, descabelado, com uma ou duas música legal e olhe lá”. — VALDUGA, Matheus. 2013.
A música legal e olhe lá, no caso, era Do I Wanna Know e eu conhecia porque tocava na rádio. De resto…
Tirando o lado burro e teimoso de quem achava que achava saber tudo, é legal de destacar aqui que… galera… vou ter que fazer a introdução da banda, é mais forte que eu. VAMBORA.
Imagina que nós estamos no final dos anos 90 iniciando os doismil, ok? Fazendo a recapitulação FIXTÁILE:
No Brasil, o pop-rock domina os programas de rádio e TV com O Rappa, Skank e Raimundos. Charlie Brown Jr., Pitty, Detonautas e CPM-22 surgem e se afirmam como os novos expoentes do rock brasileiro e o resto é história.
Já in english, imagina que lá na ilha, mesmo Oasis, Blur e Supergrass estabelecidos como os grandes nomes do britpop, o movimento começa a morrer e a necessidade de algo novo é latente na terra da rainha. E não só na terra da rainha, na do tio Sam também. O grunge dá uma morrida forte quando o Nirvana acaba ali em 94, o final da década se arrasta em nichos e, de um lado temos o pop-punk pipocando na MTV com clipes abobados de Blink-182, Green Day, The Offspring e companhia, ao mesmo tempo que do outro lado o nu-metal também ganha expressividade com System of a Down, Linkin Park, Korn e Deftones.
Porém, o que realmente vende, domina e agrada tanto crítica quanto público, é o Is This It, do Strokes, lançado nos Estados Unidos em 2001. E aí você me pergunta por que caralhos eu tô falando de Strokes se o texto é sobre Arctic Monkeys.
Eu te respondo, mesmo sem precisar dessa impaciência e desse palavrão:
Arctic Monkeys só surge na Inglaterra em 2005 porque o The Strokes ditou a tendência radiofônica, popular e cultural do rock cantado em inglês no início do século 21.
(…frase pesada, admita. Eu sei vender o peixe!)
Além de ser a primeira banda do mundo a se beneficiar duma tecnologiazinha que se popularizava lá fora — a internet —, Arctic Monkeys é uma resposta ao marasmo cotidiano inglês, à confusão cultural e à necessidade hormonal que os novos adolescentes tinham. Tava tudo ali: a música, o estereótipo, a identidade, o visual e a influência norte-americana. Inclusive, o Alex Turner, vocalista do AM, já afirmou que só queria ser um dos Strokes.
(Eu fico tiririca da cabeça pensando que a geração Z e a Alfa só conhece essas bandas por cortes viralizados de TikTok. Puta merda. Quase 32 anos aqui, galera. Me deem um desconto.)
Mas isso é pra outro dia. Me empolguei, turma. Voltemos diretamente ao texto de hoje.
Por mais que tenha sim, sido fruto desse boom que foi o indie-rock dos anos 2000, o Arctic Monkeys mostra que se o primeiro e o segundo álbum (2005 e 2007) foram de histeria, é no terceiro, Humbug (2009), a confirmação no cenário e no imaginário musical inglês que, além da guinada a novos gêneros musicais, o diferencial sempre foi a letra. Claro, as guitarras são incríveis, a melodia, a harmonia, a bateria, os riffs etc etc etc.
Mas é a letra. o Arctic Monkeys é, acima de tudo, a letra.
E assim, chegamos em Cornerstone (2009).
(O Matheus de 2013 meio que tinha um ponto, né? Câmera ruim trazendo o hipster-vintage, o cara magrinho de suéter vermelho, cabelinho bagunçado e a clara tentativa de seduzência… mas eu não tô voltando com isso! Foco!)
Cornerstone é diferente do restante do álbum. Se você ouvir bem, a levada base do violão é total country music a la Johnny Cash e os versos ou se repetem ou têm pequenas variações que avançam a história do protagonista. Dei uma procurada e sim, o Alex disse em entrevista que tava ouvindo bastante folk e country na época. E a regra é clara: se for country, é história de tiroteio, rio, dinheiro, amor interrompido, amor perdido, amor conquistado e tudo mais que o sertanejo raiz já nos presenteou aqui no seco agreste tupiniquim.
Vem comigo! (Ah, e claro, sempre bom dizer que essa é a minha interpretação e a tradução é livre. Fique livre pra concordar, complementar e discordar.)
Achei que tinha te visto no Battleship
Mas era só alguém parecida
Ela não era nada além de uma ilusão de ótica
Sob a luz de um aviso
Ela estava perto, perto o suficiente pra ser seu fantasma
Mas as minhas chances se foram quando perguntei
Se podia chamá-la pelo seu nome
(I thought I saw you in the Battleship / But it was only a look-alike / She was nothing but a vision trick / Under the warning light / She was close, close enough to be your ghost / But my chances turned to toast when I asked her / If I could call her your name)
Nosso personagem busca alguém que já se foi, acredita encontrá-la no bar Battleship, percebe que se confundiu, mas ainda assim pede pra chamá-la pelo nome da primeira pessoa, recebendo a recusa como resposta.
Ok, alguém ainda não superou o término e a perda. Continuamos, e na estrofe seguinte uma situação parecida se repete, onde ele pede a uma segunda pessoa se poderia lhe chamar pelo nome da(o) falecida(o) e o resultado de antes se repete.
Pensei que tinha te visto no Rusty Hook
Aconchegada numa cadeira feita de vime
Eu me aproximei para olhar mais de perto
E beijei quem quer que estivesse sentada ali
Ela estava perto, e ela me abraçou firmemente
Até que perguntei de forma ridiculamente educada
Por favor, posso te chamar pelo nome dela?
(I thought I saw you in the Rusty Hook / Huddled up in a wicker chair / I wandered over for a closer look / And kissed whoever was sitting there / She was close and she held me very tightly / ‘Til I asked awfully politely / Please, can I call you her name?)
Terceira situação, outra vez a nova pessoa se nega a ser chamada pelo nome da(o) outra(o), até o protagonista se questionar se há uma forma de encontrá-la de fato e não só os indivíduos semelhantes. Qual seria a “prova real” de que ele realmente a conheceu, que as memórias são verdadeiras e não apenas fruto de sua imaginação?
A resposta vem no início do pré-refrão:
Me diga onde é o seu esconderijo
Estou preocupado em acabar esquecendo seu rosto
E eu perguntei pra todo mundo
Estou começando a achar que te imaginei o tempo todo
(Tell me where’s your hiding place / I’m worried I’ll forget your face / And I’ve asked everyone / I’m beginning to think I imagined you all along)
Bom, há um desfecho na letra e spoiler:::::::::::::::::::::::::::::::::::: ele faz a mesma proposta pra própria cunhada e ela aceita ser chamada do que ele quiser MAAAAAAAAAAS não é o ponto da discussão. Prendemos nossa atenção no conceito do hiding place, ou em PT-BR: esconderijo.
Podemos compreender esse esconderijo como aquele refúgio — físico ou metafórico — que faz de você, você. Nesse esconderijo você guarda seus traumas, felicidades, lembranças, aqueles assuntos que não conversa com mais ninguém e… às vezes nem com você mesmo. Esse esconderijo é o lugar pra onde vamos quando precisamos fugir de conversas chatas, de empregos ruins, de abandonos, de problemas. É pra onde vamos quando queremos contar as novidades, apresentar pessoas novas, entender novos amores e fofocar sobre o quão azul está o céu hoje. Chame de alma, de essência, de caixa de pandora, ou como quiser. Ele pode ser labirinto, praia, sala, jardim, sofá com cobertores e dois gatos. Você o define.
Relacionando-o na letra, entendo que o protagonista já não consegue mais diferenciar as pessoas e que a saudade/trauma/memória se confunde em rostos e corpos alheios que o remetem a pessoa perdida e que, pra conseguir finalmente reconhecê-la, o esconderijo é o lugar seguro em que lá tirará suas dúvidas. Por isso o me diga onde é o seu esconderijo e lá eu saberei se já o visitei, se você já lá me levou e me permitiu habitar sentimentos que apenas você habita ou permite outros habitarem.
Basicamente um: me deixa te conhecer por inteira e assim eu saberei se já te conheci por inteiro alguma vez. E isso nos leva à Vidas Passadas (2023), filme sul-coreano escrito e dirigido por Celine Song. O longa discute como o amor se apresenta, se estabelece e se reapresenta naquilo que já foi ou poderia ter sido. Não vou dar spoilers ou fazer sinopse. É um dos meus filmes favoritos e grande parte dos meus favoritos me apareceram sem eu nem saber sobre o que eles eram. Dê uma chance. É incrível como a simplicidade das relações se torna algo complexo quando envolvemos idade adulta + compromissos + desejo de voltar + necessidade de seguir.
A protagonista, Nora Moon, é sul-coreana e teve um namorico de pré-adolescência com Hae Sung. Porém, se mudou para os Estados Unidos com a família e, algumas décadas depois, Hae Sung reaparece querendo visitá-la. O problema (ou solução, defina você) é que Nora tem um relacionamento estável com John, um norte-americano. Esse diálogo a seguir é a minha cena preferida do filme e conecta diretamente ao hiding place de Cornerstone.
John sabe que Hae Sung está vindo da Coreia para visitar Nora. Ele também sabe que Hae Sung representa grande parte do passado de Nora, mas pode ser também seu presente e futuro. Como lidar com essa informação quando nem Nora sabe exatamente o que fazer? Aí temos essas duas excelentes falas do roteiro. John conta à Nora que ela fala sonhando, mas que essas falas são em coreano e, por isso, não entende se ela está conversando com ele ou com outras pessoas.
A grande sacada aqui é o duplo sentido que a língua tem. John não fala só do idioma coreano, mas trata a língua como a linguagem, comunicação, individualidade e singularidade da personagem. Quando Nora dorme e está vulnerável ao seu inconsciente, totalmente livre do superego, do medo de julgamento e das consequências daquilo que é dito, Nora está em seu esconderijo.
E quando Nora está em seu esconderijo, não permite que John o acesse.
A língua assume o caráter de cadeado, de baú de desejos e saudade, de uma olhada torta no espelho, de um encontro com as outras versões. A língua não lhe é possível porque lá é o seu último refúgio. E se John não consegue acessá-la, quem consegue?
Tanto ele quanto o protagonista de Cornerstone, tentam reconhecer essas pessoas em seus hiding places, mas acabam sendo impedidos de entrarem naquilo que não lhes é direito e ficam à deriva esperando ações ou soluções. Na música, o personagem abre mão de tentar entrar nos esconderijos e se contenta em estar com alguém que vá exercer o papel da pessoa anterior. No Vidas Passadas… vocês vão ter que assistir.
Esse esconderijo pode se apresentar na cena da caverna em Clube da Luta (1999), na máscara que Anakin usa quando personifica Darth Vader, nas horcruxes do Voldemort, no ponto cego que há entre a cama e a teletela de Winston em 1984, na BatCaverna, numa meditação budista, num sorvete tomado no final de tarde, numa sobremesa de infância, num filme.
Não há regras. As únicas exigências são que ele seja único e seja seu. Taman—e neste exato momento meu óculos (feito em setembro) acabou de quebrar sozinho.
Terminamos outro dia, turma. Não é hora de ir pro meu esconderijo, preciso ir lá na ótica ver se essa tranqueira tem garantia.
O texto fez sentido? Espero que sim.
(E caso não tenha ficado claro, o mostardas é um dos meus hiding places.)
Obrigado até aqui e até a semana que vem!
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4. OBRIGADO!



E pensar que falar em terra da rainha agora é démodé.