rodoviária
Cheguei logo depois das dezoito horas.
Seis vezes fiz o trajeto de pegar a lotação três quadras atrás do ateliê, descer duas esquinas antes, caminhar até a plataforma quarenta, voltar, questionar o atraso do ônibus, esperar dois terços de hora e perguntar ao motorista se minha encomenda havia chegado. Era impossível manter contato com a transportadora e lá fui eu, como um bobo birrento que não poderia esperar alguns dias a mais por seus pincéis e tintas. Seis vezes.
Na primeira vez fones de ouvido, respingos de tinta nos braços, alça da mochila atravessando o peito, expressão carregada, problemas inexistentes, pressa e suor. Sentei no banco em frente à plataforma, de costas para o restaurante. Em pé e chamando os que passavam, o garçom oferecia os cardápios. Dirigi minha atenção ao corredor de ônibus que ia e vinha. Cutucada no ombro, tiro meus fones e digo que não ao garçom, não quero fazer um lanche ou almoçar. Obrigado de qualquer forma.
Voltando o pescoço ao vazio, paro o movimento no meio. Sentada na fileira lateral à esquerda, colada na parede do box quarenta e nove, a mulher de sapatos limpos e gastos, vestido discreto, brincos dourados e algo em torno de setenta aniversários. Parecia impaciente. Abria e revisava a bolsa que apoiava nas coxas. Meu ônibus chegou e o motorista disse que não constava nada em meu nome.
Segunda vez e a mesma rotina. Respingos, ouvidos ocupados, sentado, negando a refeição completa por vinte e três reais. Outra vez a mulher, outra vez o banco, outra vez a bolsa, outra vez ansiosa. Teria perdido o ônibus no dia anterior, pensei. Não me importei, pra falar a verdade.
Terceira ida. De novo a vovó. Seria de fato 'vovó'? Não sei, chamo-a assim por respeito e carinho. Talvez eu tenha ficado um pouco curioso mas não ao ponto de aborrecê-la. Mesmo motorista, mesma resposta.
Quarta vez. Não almocei no ateliê e o garçom além de insistente, fazia bem seu trabalho de venda. Refeição completa com um copo de suco. Comi sem tirar os olhos da plataforma e da vovó. Havia alguma coisa errada. Esperava ela também por pincéis e tintas? Não parecia.
Quinta e como outra vez no restaurante. Chamo o garçom, que já considero meu conhecido, e percebo que minha curiosidade também é preocupação. Conto que espero uma encomenda perdida no ônibus da linha onze das dezoito horas. Brinco que todos os dias o ônibus atrasa e ele justifica numa fala automática que as companhias não querem acertar os horários e o azar é dos passageiros.
Finjo desinteresse, aponto e pergunto sobre a vovó.
Riu triste como quem lamenta a doença, a teimosia ou a tolice de quem já não tem mais solução. Disse que no final da tarde de uma sexta-feira qualquer, a vovó se acomodou no banco, revirou a bolsa e depois de algumas horas foi embora. Contou que depois daquele dia sua vinda era diária e as colegas tentaram ajudá-la no começo, mas a senhorinha se mostrava lúcida e agradecia, dizendo que o dia havia chegado e que não precisavam se preocupar.
Depois de algumas semanas pararam de se importar e a presença da vovó virou tão normal quanto a de um vira-lata que ronda os botecos em busca de restos de comida, ou de um taxista escorado na porta do carro esperando o próximo passageiro. Preso à história do atendente, não vi meu ônibus chegar e partir. Fiquei calado tempo suficiente para que meu prato esfriasse e o suco esquentasse. Paguei os vinte e três reais e me despedi observando a senhora impaciente.
Sexta e a curiosidade se tornou dó. Cheguei direto no restaurante, pedi um café expresso e o garçom viu que minhas tintas extraviadas já não me importavam tanto assim. Postou a xícara na mesa e falou que não adiantava perder tempo, que eu não era o primeiro a tentar decifrar a velha do banco. Qual sentimento eu deveria ter, então? Nenhum deles e todos eles pareciam me pertencer naquela situação. Pena e angústia? Ela parecia aflita mas talvez fosse de excitação. Mas ela realmente sofria ou estava perdida? Será que perguntar ou oferecer ajuda seria intrusivo da minha parte?
Meu ônibus estacionou e ríspido, depois de me ver seis dias seguidos, o motorista relatou que enfim teve retorno da companhia e de fato, minha encomenda se perdeu e que eu deveria entrar em contato diretamente com eles. Indignado, concordei com a cabeça, me virei e o garçom brincou comigo fazendo caretas para o motorista. Agradeci com um sorriso e acenei me despedindo.
Trinta e um dias se passaram e voltei à rodoviária. Como qualquer um que não compadece por muito tempo, só recordei o conhecido e a vovó quando desci o corredor central e entrei na ramificação das plataformas 25-50. Todas as vagas lembranças voltaram e acelerei o passo para os bancos e restaurante. Cheguei perto do lugar e reconhecendo os respingos de tinta em meus braços, o garçom comemorou minha volta me cumprimentando de longe. Me aproximei e agora já conseguia avistar a fileira dos bancos onde a vovó sentava.
"Você nem acredita", me disse. Contou que alguns dias depois da minha última ida, numa véspera de feriado em que a rodoviária parecia um formigueiro de tanta gente que ia e vinha, terminando de anotar o pedido de uma mesa, viu a senhora se aproximando. Fez a pergunta padrão de atendimento e lhe ofereceu o cardápio. A senhora disse que precisava apenas de uma garrafa de água com gás e pagou com moedas. Me disse que serviu as torradas e os pastéis na mesa de dois garotos, e que alguns minutos depois olhou para o banco da senhora e ela já não estava mais lá.
"É isso?", perguntei curioso esperando o resto. Me respondeu com sorriso de resposta pela metade e abrindo os braços, disse que não sabia. Fiz graça dizendo que aquele era o mistério mais frustrante da minha vida. Me dirigi à plataforma quarenta depois do atraso do ônibus e recebi a caixa de papelão reforçada com fitas. Voltei do box feliz pelos pincéis e tintas mas ainda intrigado com o destino da mulher. Acenei para o garçom me despedindo e ele me chamou. Caminhamos em encontro.
Começou a falar e parou seco. Disfarçou um começo de choro ou arroto de refluxo, não sei ao certo. Se recompôs. "Os olhos delas brilhavam", me contou. Repeti a frase. Repeti a frase com interrogação. Repeti a frase. Não lembro da qualidade das tintas e dos pincéis, não lembro de quais eram meus problemas inexistentes, não lembro das telas que pintei naqueles meses. Lembro que não fazia diferença se ela embarcou, foi embora, ou se algo ou alguém havia chegado. Os olhos delas brilhavam.
recadinhos rápidos que faltaram ali no final:
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3. é sério ué, vai ficar de preguicinha? vai cair pedaço?
4. .................obrigado (pela leitura e pelo apoio), ok? OBRIGADO.
Sou fascinada pelo cotidiano. Eu fico andando na rua, montando histórias sobre as pessoas e analisando os gestos alheios, acho que é um pouco isso, de se encontrar no desconhecido. De repende a vovó recebeu uma notícia há muito aguardada, então algo de bom também está por vir, tipo isso.