eu não leio poesia,
mas hoje eu li.
Primeiro as letras maiúsculas e apresentações.
E aí! Tudo certo? Como anda a vida? Espero que bem!
O título da newsletter não é mentiroso, a vírgula é que dá a deixa pra continuação. Antes que você — talvez — pense “ah não, poesia tô fora”, me escuta.
Sim, eu tive e de vez em quando ainda tenho um forte problema com a poesia.
Acredito que ela e os filmes musicais enfrentem o mesmo preconceito. Muita gente fala que não gosta, mas nunca leu-assistiu. Tá ligado? E aí essas pessoas podem argumentar com “eu não preciso experimentar pra saber que é ruim”.
Irmão, calma. Num é droga e nem crime, não cai pedaço assistir um Cantando na Chuva (Gene Kelly e Stanley Donen, 1952) e folhear um Jóquei (Matilde Campilho, 2014).
Pelo contrário, até faz bem.
(o até é foda… até tenho amigos que são poetas e até os trato como pessoas normais.)
Me explico.
Realmente não sei esse cansaço-poético era inteiramente pessoal ou se tinha a ver com o contexto em que cresci. É estranho, as poucas lembranças que tenho de atividades com poesia na infância foram superdivertidas! Tivemos uma apresentação do Mario Pirata no Centro Cultural; e na quinta série uma professora de português nos explicou que a letra de A Banda, do Chico Buarque, se tratava dos anos passando pela janela e a banda de carnaval era uma metáfora.
Mas em algum momento da adolescência perdi qualquer conexão que tinha com o lírico. Ninguém na minha volta consumia, demorei bastante pra entender letras de música como poemas e, por mais que eu vendesse poesias pras colegas em troca de cachorro-quente (época difícil pros apaixonados, não conquistei a primeira menina que me pediu um escrito), era irrisória a chance de eu trocar um episódio de Dexter e Naruto por Quintana ou Drummond.
Na verdade, a poesia passou a me soar presunçosa, pedante e nada acessível. Talvez pelo medo de querer criar algo ou simplesmente por inveja, poemas viraram — pra mim — algo de menina, de gente inteligente, de artista, de poeta, de mentiroso ou de gente da capital. É uma merda mas é o que é. Antigamente ouvir o termo poeta era um asco semelhante a gremista, youtuber e coach. Brincadeira, amigos tricolores e criadores de vídeo, tamo junto.
A vida andou, letras foram escritas com a banda de amigos e lá em 2018 os primeiros versos ~~poéticos~~ da vida adulta apareciam. Um dia (!) o mundo terá o livro das tragicrônicas vomitadas entre 18 e 21 em meio a términos, lutos, paixões e desventuras.
Mas o dia não é hoje.
Quando a gente vê que o mercado literário tá uma desgraçada e que poesia tem menos divulgação, exposição e números de vendas menores que contos e romances, percebemos que na real, pra fazer livros de poemas é necessária uma coragem imensa com um foda-se em riste igualmente enorme pro mundo e pras probabilidades. O mínimo que podemos fazer aqui no mostardas é dedicar um tempinho aos amigos poemistas (…pensaremos num termo melhor).
Imagine agora este espaço como uma oficina (de escrita, não de carros). Imagine o texto de hoje como exercício. Não quer se exercitar? Bem-vindo ao clube, mas já que estamos aqui, dê uma chance ao atleta lírico que habita em ti. Vista teus tênis de caminhada pra dentro de si mesmo e me acompanhe nos 100 metros de prosas e versos.
Tenho a sorte de ter conhecido três poetas que me ajudaram — e ajudam — a melhorar a caneta e cavar um pouco mais fundo onde cura e machuca. Trago aqui, por ordem de lançamento, alguns fragmentos de dezenove e outros manifestos de amor (2021), da
; Ruído branco (2022), da e Tempestade de som e fúria (2023), da . Além das obras, as três escrevem suas newsletters com primazia aqui no substack e só não lê quem não quer. Não tem desculpa, vambora ver como se relacionam nas semelhanças e se diferenciam na autenticidade!PROTESTO (dezenove, pág. 59)
[…] Infelizmente, não me lembro do primeiro café; só das aulas cabuladas em protesto aos poemas lidos sem emoção pelo professor que carregava bebida no jaleco. Café e bolacha, ritual das 9h30, mãos no bolso e meia dúzia de bilhetes que nunca entreguei porque não sabia quem amar. Amei tardiamente e carreguei três pesos aos pés, já que os olhos dele não eram tão brilhantes e, mais tarde, eu descobriria que, coincidentemente, também carregava bebida.
Minha primeira ressaca foi a última, e nesse dia, também me apaixonei. Foi a primeira vez que me apaixonei pela boca, altura e voz de um homem. Uma semana depois, foi a primeira vez que achei que morreria de paixão. […]
COPO CHEIO (dezenove, pág. 79)
[…] A saudade é uma conquista. Para senti-la, é preciso ter sido honesto com seus sentimentos. É preciso ter sentido o abraço da sua avó como a proteção de um céu infinito. É preciso saber que o vinho e os jogos de cartas no natal do ano passado são o passado de uma história que perpetua no sangue e na voz de quem conta. Para senti-la, é preciso se ver no rosto do amigo. Oferecer os ombros, chocolate e honestidade. Poucas vezes pensei nisso sem chorar. Chorar de saudade é um privilégio. […]
Já comentei com a Bianca que quando comecei a querer escrever publicamente, o dezenove foi um dos livros que me ajudou pra caralho a ver que era possível materializar as tuas ideias sem ser um AUTOR(A) consagrado(a). Uso o negrito e o itálico pra relacionar com o peso do termo poeta que citei anteriormente. Ver a tua amiga publicando um livro de forma independente, com ajuda de amigos, com liberdade pra simplesmente ir, foi um diferencial muito forte no meu início. Sabe aquelas perguntas bobas que a gente se faz quando tenta? “Nossa… ela falou isso pra todo mundo ler? E se algum colega de escola ou ex-namorado achar que é pra ele e ficar brabo? E que que a mãe dela vai pensar? E aquela indireta pra si mesmo… ela não tem vergonha disso? Ué, isso aqui não dá processo?”.
Brinco que a escrita dela é muito diferente da minha. Bonita, polida, poética, com ares de drama, pureza (pureza?) e parnasianismo… na minha eu provavelmente faria uma piada falando que nem sei direito que que parnasianismo significa, mas é essas paradas rebuscadas aí (eu acho). E a curiosidade que tenho hoje, um pouco diferente de antes, é qual Bianca se lê quando revisita o dezenove (lancei uma pergunta extremamente intimista e foooooda-se).
E o “(eu acho)” me leva à Sue.
Já comentei no texto que criamos juntos que a escrita da Sue é meio ranzinza, meio revoltada, cheio de gíria nova, um pouco desesperançosa na primeira lida mas que na verdade é a teimosa pela felicidade na segunda; e que esses elementos foram os causadores instantâneos de gargalhadas inusitadas (com respeito) enquanto eu lia sobre Paul Auster e a falta de sombra na Orla do Guaíba. Só que a Sue do Ruído branco (2022) eu ainda não conhecia. É como se ela pegasse a pessoa pela goela e falasse “ó, tu vai se ver do lado avesso sem disfarce, sem cerimônia e sem nenhuma defesa”.
Vi como um misto de cotidiano, de estudo, de bagagem e de desabafos por vezes regurgitados em várias doses. Sabe aquilo que tu lê e parece que veio “do nada” mas esse “do nada” tá lá faz eras? É isso. Gosto de quando o escrito quebra ritmo e te joga em uma direção oposta, seja na história, no caminho ou no objetivo da escritora. Gosto também quando os poemas (ou contos-crônicas, no meu caso) se conectam indiretamente e você tem que tá atento pra perceber as relações. Escrita séria e de gente grande. Pego meus palavrão e crase erràda e nem me atrevo a competir!
(abertura) (Ruído branco, pág. 15)
É noite
A pele avisa
O sereno se aglutina na pálpebra
da folha.
Quando cai a noite
O corpo treme
O braço amolece
A perna despenca
Sinto que é noite
E não porque as estrelas cintilam
no céu coberto de nuvens artificiais
Mas porque o cosmos se faz dentro
A poeira se revolve, envolta em si.
(A noite como personagem viva dentro de uma estória. Usei muito no livro 2… MAS ISSO NÃO É SOBRE MIM. CONTINUEMOS.)
(outro) Não pude ser outra coisa (Ruído branco, pág. 32)
Não pude ser outra coisa
senão isso.
Empurrada em tais circunstâncias,
prisioneira de hora determinada,
os planetas se debatiam.Expelida em meio ao medo
pelo corpo repelindo
meu corpo,
aprendi na primeira queda
a escapar da morte.Fui cúmplice de
mortes outras—
silêncios
raivas
uivos.Papéis que fui e
rasguei
Papéis que sou e
escondo debaixo da pedra.
(outro) Abro a boca (Ruído branco, pág. 51)
Abro a boca.
Com a expectativa de um deus
Derramo tudo de dentro
Regresso ao local do crime
Surpresa ao me encontrar mutilada.
Nesse último aqui eu soltei um sonoro CARALHO!.
E entre bocas e planetas, chegamos na terceira escritora. A Dri é uma baita surpresa que apareceu aqui no substack, conheci a newsletter dela enquanto rolava a preparação da nova edição do seu primeiro livro. Ela tem um processo criativo que parte de músicas ouvidas no momento, internalizando a canção e despejando tudo de volta pras folhas. Eu vou pra um lugar parecido, gosto de escolher uma ou duas canções (no máximo), deixar no repeat e ficar horas escutando a mesma coisa pra direcionar minha cabeça e meu fluxo pra essa ambiência.
E o mais foda de ler os poemas da Dri foi tentar relacionar a música seguida do conteúdo, visto que no prólogo da obra ela explica um pouco desse processo que se caracteriza em encontrar espaço para a criatividade num lugar que antes era de ansiedade. Lá pelo quinto, sexto, sétimo poema, começou a fazer bastante sentido pra mim o quanto das palavras da Dri são permeadas por verbo. Não só na explicação gramatical, mas de como as cenas e os personagens agem; existe o tempo pra contemplação e entendimento das sensações táteis e sensoriais, mas a ação é a completude da parada. Tem hora que tu só quer ler umas linhas que vão te deixar numa zona de conforto e do nada começa torando um JUST DO IT! ou em pt-BR: VAI DUMA VEZ, CARAIO.
29/04/21 5’16’’ (Tempestade de som e fúria, pág. 48)
bette davis eyes - kim carnesquietude
que se vale
do medo
é o pior tipo
se esgueira
por florestas cinzentas
encobertas
por copas fechadas
copas de vino
para sorver a alma
para fugir
e correr
pra um
lugar ameno
e mais alegre
dança comigo?
a música convida à vida
o movimento que existe
o que se esconde
na mata fechada
aparece
com brilho
e leveza
ao fim da canção
traz à tona quem
sempre existiu
dança comigo, então?
13/01/22 2’27’’ (Tempestade de som e fúria, pág. 65)
little birds - neutral milk hotelvence
a batalha
Do vento
sobre
o tempo
de partir
limões
e suavizar
o ácido
pra transformar
o pé após pé
em caminhar
constante
vez ou outra
olhando
pra trás
em busca
de inspiração
ou pra evitar
o tropeção
são todas
marcas
da evolução
pra fechar
o livro
por um instante
respirando
a lição
Esse último me deixou pensando bastante, é quase um mantra, parece ser um resumo de alguns textos que trago aqui ou do próprio seguimos! que costumo usar… mas dá pra trocar os limões por bergamotas?
E não, eu não leio poesia, não o quanto eu ache que deva ler. Eu não leio poesia, mas tento nos dias que a cabeça tá mais '…' do que '!', que tem mais poeira do que dívidas. Eu não leio poesia, é um mundo bastante perigoso…
…mas hoje eu li!
E foi muito bão, espero que pra ti também. O mundo é grande — e tá acabando —, aproveita pra ler coisa boa enquanto ainda é possível.
VAMO!
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1. estamos com novos exemplares físicos do algumas estórias e do meu segundo livro estórias de segunda. me manda mensagem aqui ou no insta pra comprar o(s) teu(s)! e se preferir, a versão digital do algumas estórias;
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3. deixa o like, cadastra teu email, comenta, manda feedback, encaminha pros amigos e pros inimigos. me ajuda demais!;
4. é sério, apoie!
eu amei esse texto pela gentileza de ler meus poemas e também por apresentar duas escritoras incríveis naquilo que fazem. um dia falarei do teu livro (quando conseguir comprá-lo). o mundo é grande e tá acabando... é isso.
Eu estava ansiosa por essa newsletter, conversamos sobre ela umas vezes e quero te dizer que valeu muito a pena! Primeiro porque as autoras são maravilhosas, e segundo porque eu me dei conta que eu gosto de poesias, passei a vida toda lendo poesias, mas no que se trata de poesias escritas por mulheres eu sou uma baita ignorante! Então quero te agradecer imensamente por esse recorte, que em nenhum momento você militou a respeito "precisamos ler mais mulheres", e sim simplesmente escolheu autoras que te sensibilizaram. E a mim também, através dessa news. Obrigada!