raminho roubado
esse escrito é a continuação independente de 'ateliê', 'ateliê / 2', 'borboletas mortas', 'rodoviária' e ‘ateliê / 3’, pertencentes à série 'impasto'.
Poucas vezes na vida roubei alguma coisa material. Balas no mercado, um CD de jogo do coleguinha e a garrafa de espumante da mãe do meu amigo. Posso ter roubado outras mais, mas agora só lembro desses três delitos.
Quando furto frases ou ideias de amigos e desconhecidos no ônibus ou nas mesas de restaurantes alheios, tento avisá-los que irei roubá-los. Parece mais ético.
Há muito tempo eu não voltava pra cá. Alguns dias nesse lugar
e
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e
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esses primeiros parágrafos demoram demais pra saírem da minha cabeça. Logo agora? Acho que é receio de que alguém lerá. Burrice. Paremos de perder tempo.
Vim pra cá e não trouxe meus pincéis, tintas e telas. Tentei tirar uns dias de folga e curtir o além da pintura. Resultado? Cometi outro crime.
Comentei ontem na casa do meu irmão que é estranho estar aqui. Novos prédios são esqueletos de cimento iguais aos antigos, moradores diferentes se aproximam e são velhos conhecidos. As silhuetas e as feições são as mesmas mas escutando as vozes percebo que nunca as vi antes.
Sem as tintas, sem os pincéis, sem as telas, sem rotina e sem qualquer noção espacial e temporal. Caí num vórtice e num limbo de calor rebatido pelo ventilador e pelos latidos dos cachorros no pátio. Quantos anos tenho. Em qual casa moro. Qual carro dirijo. Eu dirijo algum. Que horas são. Tesão e cansaço no meio da tarde, sono durante a manhã, vontades de telefonar na madrugada.
Perambulei errante na avenida e nas ruas laterais. Subi bairros e desci vilas. Andei trilhas e corri becos. Entrei vinte e tantos e saí menos de dez. Os lábios cortados e ressecados entregavam o tique nervoso de morder a parte de dentro quando em situações de desconforto.
O interesse em estar aqui dissipou na esquina e pensei em voltar ao meu ateliê. As obrigações e as alegrias evaporaram. Vários compromissos foram desmarcados.
Quase todos.
Sim.
Havia um, marcado há muito tempo, quase esquecido. Ou melhor, talvez esquecido de propósito. Explico depois.
Eu deveria ir.
Tentei limpar meu rosto sujo dos dias de vagabundagem, vesti minha melhor roupa e tirei os ruídos antigos dos ouvidos.
Fomos.
Os sopros abafados de chuva… choveram. Chovia muito.
Sentamos.
Eu de verde queimado e vestindo os respingos.
Ela de tomate vermelho e vestindo o mundo.
Tem alguma coisa errada comigo hoje, desculpa. Não consigo entender o tom e o teor disso. Tento ser direto mas o volante guia na direção de querer construir belo, lírico, ritmado e trabalhado condizente ao seu tom de voz.
Perdão.
Eu não creio em algo. Creio em nós, nas pessoas. Mas ano passado foi um ano em que eu acreditei bem menos, pra ser sincero. Talvez por não estar num momento de fé, tenha tentado escapar de tudo e todos que citei anteriormente.
Enfim.
Bebemos e comemos.
Berramos e brindamos.
Falamos dos varais de lampadinhas laranjas e de que é proibido requentar pastéis. Falamos de nossas versões e do tédio da mesa ao lado. Falamos de filmes dublados e da necessidade do amor como algo que cuida e faz pertencer.
Os lanches demoraram e eu comemorei. Pois presentes ali, lutamos contra
os momentos em que boiamos inertes ou dormentes onde
os brilhos enferrujam e as aquarelas se reduzem cinzas e a comida perde gosto e a piada perde graça e o café perde ferver.
É importante não deixar de acreditar que exista um vilarejo onde Crisóstomos, Camilos, Isauras e Antoninos habitam felizes, simples, completos e conscientes de que a plenitude reside em uma casa de madeira na beira do mar. Nessa casa de pescadores as velas e a areia da praia vivem em harmonia, inundadas pelo som do oceano e do bater de corações.
É vital lembrar que só pintamos e desenhamos aquilo que realmente aquece nosso peito, coça os nossos olhos e nos apressa com tempo sobrando. É saber que deve-se comemorar uma queimadura do sol quando causada pelas horas leves de um dia azul.
13 bilhões de anos, um universo infinito, o caos e a luz, sem as respostas das perguntas mais complexas e singelas que a humanidade conseguiu formular sobre si
e não,
não há nada maior e mais importante que as duas fagulhas se unindo para virarem fogueira.
Horas e meses se passaram entre leão e capricórnio.
Percebendo que o cabelo repicado dela representava uma coroa, me vi dentro de uma pintinha na palma da sua mão
e
e
e
e
tudo ficou óbvio.
Criam-se diferentes rituais, símbolos e jeitos de eternizar um momento, sentimento ou forma de demonstrar. A mim os quadros e as tatuagens, mas e ela? Eu deveria ter esperado seu aniversário para presenteá-la com um buquê de orquídeas?
Não. Há momentos em que se espera não haver espera. E na falta de uma floricultura ou de um jardim botânico, roubei o raminho mais sincero da flor de plástico que enfeitava a nossa mesa.
"E se tiver câmera? E se alguém gritar? E se o dono ver que eu tô roubando?"
E aí nada, é o mínimo que podemos fazer.
Por mais que as coisas não aconteçam ou aconteçam de outra maneira, me pego rindo besta quando conheço fagulhas que me fazem crer, causam a boa ansiedade e a saudade instantânea.
No final de tudo, tudo é muito simples.
À Primeira Vista e todas as vistas seguintes.
Na verdade eu roubaria por nós todos os raminhos de plástico necessários para enfeitar as voltas das fogueiras embaixo dos varais de lampadinhas laranjas.
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3. é sério ué, vai ficar de preguicinha? vai cair pedaço?
4. .................obrigado (pela leitura e pelo apoio), ok? OBRIGADO.
cada vez mais poeta esse matheus valduga.....
agora que sou autorizada a comentar (devido a minha capacidade de logar nas coisas) preciso dizer que amei esse texto, já quero grifar vários trechos e fazer um crossover no troço absurdo. me aguarde hahahah