ateliê / 4
‘ateliê / 4’ é a continuação independente de ‘ateliê’, ‘ateliê / 2’, ‘borboletas mortas’, ‘rodoviária’, ‘ateliê / 3’ e ‘raminho roubado’, pertencentes à série 'impasto'.
Em pé, de frente pra tela branca vazia.
skrting on the surface no repeat.
Hora do almoço e a fome que já viera algumas vezes não era incômoda.
Pincéis na mesa, latas de tinta no chão, tela branca vazia no cavalete. Mão esquerda na cintura, a direita coçando bigode e feridinhas do rosto. Arrancou um pelo mais comprido que os demais.
Os pés davam sinais de cansaço e já não sabia há quanto tempo encarava o início da próxima obra. Normalmente cobranças e comparações permeavam a manhã com agonia mas, mesmo sem ideias e inspirações, a tela branca vazia no cavalete lhe acompanhava tranquila.
Coçou o sovaco e pensou que precisava comprar relógio de parede e pacote de velas pras possíveis quedas de energia das próximas chuvas.
Bocejou. Dentes se dividiam entre sorrisos involuntários e mordidas no interno do lábio inferior. Umedeceu o pincel pela enésima vez esboçando a primeira pincelada.
O celular vibrou no bolso direito. Número desconhecido com código de área que já fora lar. Desligou a caixinha de som.
— alô?
— como tu consegue manter o mesmo número depois de tantos anos? sempre penso que alguém diferente vai atender
Reconheceu a voz familiar que não gostava de apresentações e despedidas.
— oi? como ass—
— assim mesmo. e adivinha quem acabou de chegar na capital?!
— você veio pra cá? — outro bocejo.
— sim, euzinha! tu tá aqui também, né? tá de bobeira hoje?
— …acho que sim — coçou um dos olhos por baixo dos óculos.
— e onde a gente se encontra?
— cara… na real acho que não tô de bobeira, não
— cê tá trabalhando?
— sim, mas nem por isso
…
— tá tudo bem? você não quer me ver?
— acho qu—
— tô com a tarde livre, mas tá uma cor—
— tá tudo bem
— tá mesmo? acredita que vi uma guria com a mesma camiseta que você me deu anos atrás?!
— raridade! raridade e bom gosto dela
…
— a gente não conversou sobre aquela noi— buzinas freios gritos. — alô? tá me ouvindo ainda?
— tô sim. acho que não precisa, tá tudo bem.
— tô entrando no hotel, peraí. — conversas ao fundo, porta fechando, barulho de mochilas caindo no chão e molas do colchão. — pronto. tá aí ainda?
— uhum
— como é lindo o sotaque daqui, quanto tempo vai demorar será pra eu começar a falar assim?
— pelo amor de Deus… não. por favor, não.
— imagina, acho que eu ficaria mais charmosa, não? jogando meu cabelo pra lá e pra cá falando toda no ‘ti’
…
— tá, não quero te atrapalhar mais.
— tá tudo bem, e é por região da cidade, tu vai ver que lá pra zona sul é beeem mais forte, aí é intragável… os outros tu acostuma a ouvir rapidinho.
— entendi.
…
— antes de desligar, posso te contar um sonho estranho que tive mês passado?
— claro
— até porque te envolve, né?!
— cara, tu que sabe…
— que saco tu não ser curioso, puta que pariu.
— as outras vezes que tu sonhou comigo geralmente era eu fazendo algo errado. é tipo isso?
— nããão. nada a ver, nada de errado
— então beleza
Respiros na ligação. Hesitação.
— eu tava num casebre, dentro de uma floresta, era bem cedinho da manhã e tentava acender uma vela pra iluminar o lugar, mas entrava muito vento pelas frestas das paredes de madeira. eu ia de um lado pro outro, tentando cobrir a chama do isqueiro com a mão, equilibrando a vela num pires e o vento parecia me perseguir. cada lufada de ar era como uma gargalhada maldosa, até que depois de um tempo desisti, vesti um casaco, acendi um cigarro e saí pra caminhar…
…
— cê tá me ouvindo ainda?
— oi, claro. tô prestando atenção, pode continuar.
— saí pra caminhar e ao invés de seguir a mesma trilha que eu achava que já conhecia, peguei uma mais escondidinha e abandonada que tava quase sendo engolida pela vegetação. caminhei por ali e várias joaninhas, formiguinhas e mandruvás me acompanhavam… eu nem sei se tem joaninha em floresta, tá?
— caralho, sim. juro por Deus, eu tava pensando a mesma coisa. acho que sim, né? as que aparecem no braço da gente claramente se perderam — voz de uma boca que falava com os dentes largos e empolgados. — desculpa. continua, por favor.
— e agora eu tava perto de uma clareira muito limpa, muito bonita, muito harmônica, sabe? um lugar quentinho e seguro. eu vi ela de longe e quis chegar perto, mesmo sabendo que não tinha nada ali além de um sol que começava a raiar… eu comecei a me aproximar e os bichinhos que tavam comigo pararam do nada. sabe desenho da Disney em que os bichinhos começam a tentar aconselhar a protagonista apontando pro outro lado e ela teimosa não dá bola?
— você teimosa? jamais…
— presta atenção!
— vai.
— comecei a andar em direção ao centro da clareira e lembro de sentir um cheiro bem forte de mel. mas mel de verdade, mel de favo, mel misturado com néctar de laranjeira. fui chegando perto da clareira e na minha frente, lá longe, alguém vinha da direção oposta indo pro mesmo lugar que eu. deu pra entender? ele tava na minha frente só que mais lá na frente e na direção oposta a min—
— deu pra entender. — riu.
— ué, tá rindo por quê?
— tinha esquecido de como tu para a história no meio pra explicar alguma coisa completamente nada a ver
— vai criticar?
— não foi crítica! foi só observação. é uma característica legal tua e eu tinha esquecido, é isso.
— e é sobre isso
— e tá tudo bem
— não, bobo. é sobre isso… chegamos ao mesmo tempo no centro da clareira. eu olhei pra essa pessoa e só enxerguei uma forma, uma silhueta. o sol batia nos meus olhos e eu não conseguia ver o rosto dela. ela falou alguma coisa e eu não reconheci a voz, mas também não estranhei, não tive medo, acho que ela me contou uma piada porque respondi rindo bastante, sei lá. os ombros largos, mais alto que eu, o cabelo comprido e bagunçado pro lado, sorrindo e jogando a cabeça pra frente enquanto gesticulava. nós estávamos nos conhecendo pela primeira vez e éramos conhecidos de muito tempo e… eu sabia que era você
…
— e—eu não sei o que responder
— tá tudo bem… é sobre isso. — devolveu o riso. — só foi estranho… e bom. foi bom, acordei um pouco perdida e lembrei que realmente, não lembro da tua voz e não me lembro direito do teu rosto. ontem ele apareceu perfeitamente na minha cabeça, mas quanto mais eu tentava lembrar dos detalhes, mais ele foi embaralhando e desaparecendo aos poucos, se misturando com outras coisas que surgiam. dificilmente consigo enxergar teus olhos ou lembrar do teu tom de voz e de como ele fica grave e baixinho quando você tá brabo. lembro do teu toque mas não das tuas mãos manchadas de tinta. lembro das manchas roxas mas não dos dedos segurando os pincéis... enfim, tô falando demais. só quis dizer que o sonho foi bom, eu me senti viva contigo
— tu sabe que qualquer coisa que eu fale agora não vai chegar aos pés disso que você contou, né? obrigado… eu acho? obrigado por me contar, significa muito pra mim. lembrou bastante a primeira vez que nós nos vimos. não lembro qual era o assunto, só de que tava muito quente e um vizinho passou por nós, puto da cara com um chinelo estourado na mão e você se virou pra rir… eu realmente não sei o que responder agora mas que sonho foda puta merda — falou mais rápido e com a voz mais baixa de propósito.
…
— não quero que você vire uma memória borrada
— mas é o caminho natural das coisas, não? não sei, na verdade.
— borrada? não.
— borrada não, mas rindo, se sentindo viva e com cheiro de mel? acho que não é ruim. melhor do que aquela tinta diferente que comprei, que tinha cheiro de peido e impregnou a tua sala por uma semana
— uma semana?! um mês! eu não lembrava e também não queria ter lembrado. obrigada, viu? muito obrigada...
— de nada. então é melhor que seja o cheiro de mel, né?
…
— mas… sei lá, eu sei que vai parecer bem filho da puta o que eu vou falar agora, e essa não é a minha intenção, tá? mesmo.
— tá
— você não sente saudade de mim, você sente saudade de ter saudade de alguém. você sente saudade de ter alguém pra sentir saudade. mas não sou eu, é o sentimento, é o sentimento que a gente dividiu.
…
Algum tempo em silêncio. Barulho de estática.
— não queria que as tuas cicatrizes sumissem quando eu tentasse beijar elas. não sei mais em qual bochecha elas estão. sabe?
— uhum, eu também não lembro qual era o livro que você usava como calço da mesa da sala. sei que era algum de ter—
— Drácula.
— caralho, EU SABIA. EU JURO QUE EU SABIA!
— aham aham sabia sim…
— mas lembro de rir muito e ficar puto porque um livro tão bom sendo feito de calço de mesa é quase um crime e… peraí
Limpou a garganta.
— você não é uma memória borrada pra mim, mas… cara, na verdade quando eu falei agora pouco que eu não queria ser filho da puta, desculpa. eu quis ser um pouco, sim. me irrito pra caralho com esses teus arrependimentos e pedidos de desculpas retroativos depois de tanto tempo.
— eu sei, me desculpa
— por agora ou por dois anos atrás? tô brincando!
Riram.
— e tá tudo bem, na real. eu resolvo e me isolo, você se isola primeiro e resolve depois, acho… sei lá. mas não, não tem nada de borrado… sei exatamente como era o cheiro do teu perfume naquela noite que o tempo virou, a ventania cheia de poeira entrando na tua casa, os cachorros enlouquecendo com as janelas batendo e uma folhinha parando na dobrinha do teu pescoço vermelho bem na hora que tu saía do banho e enrolava a toalha azul nos cabel—
— como você ainda lembra disso?
— foi uma cena bonita, aparece pra mim de vez em quando, principalmente quando o céu tá preteando antes da chuva e eu tô sozinho olhando os passarinhos fugirem. sei como era o cheiro, mas não qual. é uma memória bonita que me acalma, entende? justamente por isso não acho que seja borrada. é algum tipo de… sei lá…
— de conforto
— de carinho. isso, de carinho e de conforto… tipo uma clareira.
…
— tipo um ateliê.
…
— te cuida, viu? alguma dica pra recém chegada?
— não pega ônibus depois das oito da noite.
Desligaram o telefone, ligou a caixinha de som, estralou as costas e umedeceu o pincel.
“when we realize we are merely held in suspension, till someone comes along and shakes us”
Outro sorriso involuntário.
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Foda!
eu fico extremamente romântica qdo leio esses contos, odeio, vou rejeitar tudo
TÔ BRINCANDO, CAL.MA, CALABRESO